Estou lendo-o e achei interessante trazer esta passagem: (sobre o negro)
"Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada em uma armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro-mercador africanos de escravos-para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugingangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negro, numa corda puxada até o porto e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar no dia seguinta até à exaustão.
Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém-seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos- maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todos os dias o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilação dos dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado como uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma só vez, jogado nela para arder como um graveto oleoso.
...A mais terrível de nossas heranças é esta, de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária."
"A DOÇURA MAIS TERNA E A CRUELDADE MAIS ATROZ AQUI SE CONJUGARAM PARA FAZER DE NÓS A GENTE SENTIDA E SOFRIDA QUE SOMOS E A GENTE INSENSÍVEL E BRUTAL, QUE TAMBÉM SOMOS."
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